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Dono da verdade

Ser dono da verdade é uma grande merda por Frederico Mattos Olhando para minha história, sei que deixei pessoas no meio do caminho bem chateadas por ter agido como um tremendo mala, em nome “da verdade”. Não seria possível aliar uma boa vida a menos certezas e armaduras, também fora das telas? Em 1993 eu sonhava em ganhar um tênis Rebook, na época em que possuir o cobiçado modelo te alçava ao status de cara foda da escola. Eu achava era bonito mesmo, nem sabia quanto custava. Meus pais não puderam comprar. Pra me consolar, um amigo me disse algo que nunca mais esqueci: “Hoje é perigoso andar com esse tipo de tênis na rua. O trombadinha te rouba e diz que fez isso porque você é playboy e se ele não tem, pode tomar de você.” Aquilo nunca me saiu da cabeça. Observei isso quando entrei em contato com pessoas que já haviam cometido crimes – alguns leves e outros mais graves – e que estiveram presas. Ouvi, de formas diferentes, a mesma ideia: “na cadeia todos se justificam inocentes”. De fato, mesmo os autores das maiores crueldades tiveram alguma razão para agirem daquela forma. Aham, sei. Então você agiu como um merda e fodeu com todos por um bom motivo... Curiosamente, notei o mesmo tipo de raciocínio entre pessoas que fazem trabalho voluntário e se sentem melhor por conta disso. Nesses ambientes de pessoas ditas boas observei um tipo de rigidez nas atitudes que se assemelhava, em forma, com argumentações que poderiam vir da boca de qualquer criminoso. Lógicas falaciosas, balizadas por verdades que tudo justificam. Se explodiam, isso acontecia porque estavam lutando pelo que era correto; se eram duras, é porque trabalhavam por um mundo melhor; se estavam exaustas ou doentes, não podiam parar pois tinham ainda muito a sacrificar. No entanto, havia um agravante nas pessoas que se consideravam boas, corretas e justas. A moral delas servia como escudo para qualquer coisa. Esse tipo de radicalismo consigo mesmo tornava algumas dessas pessoas bastante amarguradas, quase incapazes de gozar de algum tipo de alegria. Outras se tornavam implacáveis, inquestionáveis e insuportáveis paladinas “do bem”. Eu próprio fui autor de muitas ações implacáveis dessas por puro fanatismo. Quando adolescente, dediquei muitos anos a trabalhos voluntários e religiosos. Mesmo estudando para o cursinho, vendo meu pai doente e emocionalmente fragilizado, me enfiava num trabalho voluntário de segunda a segunda, sem parar. Me sentia expiando algo de mim e trabalhava como um obsessivo na tentativa de corrigir algum tipo de mal inexorável ao mundo. Certa vez, com meu pai em fase terminal e se tratando com quimioterapia diariamente, ele teve aftas na boca. Enquanto eu tentava, como “bom filho”, alimentá-lo com uma sopa de músculo, ele se queixou da ardência. Respondi, cheio de idealismo nos olhos: “Você é um homem sem fé.” Ele chorou, apenas isso. Diante de palavras tão duras vindas de seu próprio filho, um moleque de 17 anos que vinha, há três anos, tentando agir como um verdadeiro santo em sua comunidade religiosa. O garoto, por sua vez, tinha uma boa razão para ter sido duro com o pai, estava certo de sua verdade e queria que o pai tivesse uma fé capaz de curar a doença. A postura de dono da verdade não é um crime. No entanto, é responsável por infindáveis violências emocionais do cotidiano. A mesma intensidade cheia de razão acomete advogados, policiais, jornalistas, empresários, torcedores de futebol e até mesmo velhinhos jogadores de cacheta. Todos podemos nos acometer dessa fala justiceira, extremamente cruel em suas boas intenções. Ao nos colocar como donos da verdade, seja ela qual for, fincamos um grande marco de auto-centramento em nosso próprio umbigo e mandamos todos à nossa volta tomar no cu, ainda que de maneira velada. O idealismo se torna escudo e arma, ao mesmo tempo. Coloca todos aqueles que não se alinhem com nossa visão como oponentes a serem convertidos ou exterminados. A conversão pode se operar por meio de argumentos puramente racionais ou ameaças. O cardápio está disponível ao messias, ele é quem vai escolher o seu método, variando com o quão perturbada seja sua personalidade. Pois o messias pode ser um Hitler ou Stalin. Ou, pior, uma mãe que ama demais; o diretor politicamente correto da empresa ou escola onde trabalhe. Os ditadores matam sem qualquer reserva. Os donos da verdade cuja postura social é exemplar usam isso como muleta para impor sua violência silenciosamente, agredindo aqueles que deveriam ajudar e empoderar. Mal notam sua influência asfixiadora sobre os outros. Eu te amo, logo, *sei* o que é melhor pra você Em contraponto, é comum admirarmos pessoas de sorriso fácil, que nos parecem levar uma vida fluida e agradável, sem esforço. Por incrível que pareça, essas pessoas não parecem interessadas em pregar nenhum tipo de moral ou caminho iluminado. São a antítese de discursos prontos e proselitistas. Se tornam magnéticas, encantadoras. Costumam estar cercadas de bons amigos, se tornam referência sem pedir por isso. É um charme leve, e até mesmo lúdico, de quem não tem nada a perder e não se agarra a verdades para ser respeitado. Me pergunto se vou chegar lá, algum dia. Agora torço para deixar de lado meu desejo secreto em converter os durões de plantão.

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